O rompimento da igreja com Jesus

01/12/2021

Descaminhos da Igreja Cristã nos séculos I a IV d. C.

Azenathe Pereira Braz

Imagine poder participar dos acontecimentos importantes para a história da igreja?

A história é nutrida pela memória humana que evoca os acontecimentos passados e que, por sua vez, influenciam no presente, formando identidades.

Assim, identidade é a capacidade de se manter consciente de sua vida ao longo das mudanças. É a habilidade de permanecer coerente mesmo diante das crises, rupturas e transformações que a existência humana impõe.

A memória é geradora da identidade. Participa da sua construção, porém, a identidade molda predisposições dos indivíduos ao incorporar certos aspectos particulares do passado e ao fazer escolhas memoriais. É a memória que permite a noção de duração e permite entender questões de continuidade e ruptura.

É importante relembrar para se manter consciente da identidade.

Conservar a si mesmo por meio da memória é essencial para que indivíduos e sua história não sejam aniquilados ou mal compreendidos pela remodelação com o passar do tempo.

Isso se acentua ainda mais se falarmos da compreensão de identidade no Mundo Antigo, onde essa era compreendida não pelos pressupostos individualistas contemporâneos, mas como uma agregação de vários valores.

1 - DESENVOLVIMENTO

A Igreja Cristã pode ser rememorada de várias formas ao longo da história. Seja por sua longa duração na Terra ou por sua trajetória bastante oscilante no que tange a sua aceitação, influência e transformação da identidade.

O que a história evidencia é que as comunidades cristãs, nos primeiros quatro séculos de formação, viveram conflitos baseados na incompreensão do caráter voluntário da fé.

Isso porque, durante três séculos o cristianismo foi reprimido violentamente como uma religião ilegal no Império Romano.

Os conflitos entre cristãos e pagãos são evidenciados nas documentações, e isso legou alguns entendimentos sobre a violência nesse período. Harold Allen Drake, na obra, Violence in Late Antiquity, analisa como a violência serviu de base para a construção de uma nova retórica baseada nos pressupostos cristãos que, por sua vez, estavam em construção.

Afirma que os historiadores cristãos utilizaram a memória desses momentos de perseguição para fundamentar um argumento novo sobre tolerância religiosa e contraditoriamente legitimação da violência contra os não cristãos (DRAKE, 2016, p.6-8). Michael Gaddis (2005) corroborou esse mote, quando afirmou que a retórica cristã fundamentou o entendimento de que os atos criminosos em defesa da religião não deveriam ser considerados transgressores, se fossem realizados em nome de Cristo.

2 - REPRIMIDA POR JUDEUS E ROMANOS

Nos três primeiros séculos de sua existência, a Igreja foi duramente reprimida pelo grupo social do qual se originou - o judeu - e também pelo sistema político no qual se desenvolveu - o romano. Os líderes do Judaísmo e do Império Romano foram os algozes dos cristãos primitivos.

Os primeiros integrantes das comunidades cristãs foram odiados pelo mundo em que estavam inseridos.

Foi o momento em que esses adeptos de uma fé, diferente das rígidas leis cerimoniais judaicas e totalmente distintas se comparados à antiga religião tradicional romana (que era politeísta), experimentaram:

  • O que Jesus havia predito: "sereis odiados por todos por causa do meu nome" (Mateus 10.22).

  • O preço da Cruz e foram levados à morte a fio de espada, pelas feras e pelo fogo.


Imagina, aquela tensão de não poder cultuar, adorar, orar ou falar de Jesus para as pessoas?

Sim, mesmo sob perseguição, a Igreja vivenciou grande crescimento de adeptos. Com a oposição, a divulgação do cristianismo foi intensificada, e houveram muitas conversões, inclusive de pessoas mais abastadas, pois os líderes da Igreja cristã dos séculos posteriores serão integrantes das elites do período. Em contrapartida, à medida que a Igreja sofria, ela também crescia em número e influência, que é uma consequência humana para a quantidade. Ou seja, o aumento do número de comunidades cristãs agregou poder a ela.

3 - A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

Mas a verdade é que esse foi um ponto crucial na construção da identidade da Igreja e consequentemente, um ponto de viragem para a deformação dos princípios básicos dessas comunidades.

Com a combinação de um crescimento significativo, que, de certa forma, foi fomentado pelas perseguições do Império Romano e adesão de pessoas importantes da sociedade, a Igreja gradativamente começou a virar o jogo.

Começou a se fundamentar em termos teológicos a fim de definir sua identidade e assim legitimar sua existência.

E isso se deu em meio ao contexto de perseguições, num momento em que se converter e realizar cultos cristãos era proibido e poderia resultar em prisão e morte.

Então, na esteira das perseguições, a Igreja firmou muitos fundamentos de sua fé.

  • Alguns deles legítimos,

  • Outros extremamente distantes dos princípios bíblicos.


Logo, esses fundamentos foram se firmando de tal forma que remodelaram a identidade da Igreja.

4 - EXCLUSIVIDADE DE CULTO


Uma das marcas dos cristãos primitivos era a exclusividade de culto. Esses cristãos foram perseguidos porque adoravam a um único Deus e a seu filho como unigênito do Pai.

Essa exclusividade era incomum no mundo romano antigo, onde o cristianismo se desenvolveu. Isso porque a religião tradicional romana era adepta de muitos deuses, e o cristianismo advinha do judaísmo, que professava a crença em um único Deus.

O monoteísmo era considerado pelos romanos como uma prática estranha e intolerante. Pois, o paganismo romano era inclusivo, admitia agregar inúmeros rituais novos e adorar deuses de outros povos e até construir templos aos deuses dos conquistados em Roma.

Assim, o crescimento do culto cristão e o seu caráter exclusivista foi o principal motivo para que fosse perseguido. Contudo, as perseguições trouxeram um mau resultado. Delas resultou uma prática extremamente contrária à essência identitária do cristianismo: o culto aos santos.

Você percebeu que muitos dos acontecimentos aqui citados, ocorrem até hoje?

5 - ADORAÇÃO A HOMENS

A história da igreja é repleta de curiosidades, uma delas é a idolatria. Um desdobramento das perseguições, pois aqueles que foram martirizados se constituíram nos primeiros homens que a Igreja Católica considerou dignos de adoração. Muitos cristãos foram mortos nas perseguições e, com o passar dos anos, foram considerados pessoas superiores aos demais por sua fé e obra em defesa do cristianismo.

  • Gradativamente a Igreja começou a considerar que poderia dividir sua exclusividade de culto com outras santidades como os apóstolos e os mártires.

  • Esses se tornaram os santos católicos e receberam representações imagéticas nos templos, bem como adorações e orações específicas conforme as suas benesses.

  • Com isso, a identidade monoteísta da Igreja foi remodelada segundo os padrões culturais da sociedade romana.


"O culto aos homens santos se tornou uma prática enraizada na igreja, ao ponto de ser parte importante de sua identidade" (Brown, 2018).

Essa prática foi uma apropriação e ressignificação dos costumes da antiga religiosidade romana que era politeísta (adoravam vários deuses) e que endeusava a figura de heróis que se tornaram personagens mitológicos por causa de seus feitos.

Assim, podemos afirmar a anterior existência dessa prática porque, a arqueologia mostra que nem os judeus nem os cristãos tinham o monopólio da santidade. Em toda a Antiguidade esperava-se que a piedade de qualquer espécie trouxesse em seu caminho pessoas e lugares cuja aparente proximidade com o divino implicava a operação de um poder de outro mundo. Isso não é menos verdadeiro para o politeísmo do que o monoteísmo, embora a linguagem da santidade nos grandes textos literários da chamada tradição judaico-cristã tendesse a obscurecer esse fato importante. A santidade entre os pagãos é ricamente atestada nos diversos cultos do mundo antigo e a Igreja Cristã adotou esta prática permanentemente. O que ocorreu foi que a figura de muitos deuses mitológicos foi transformada para serem acomodados às santidades que o cristianismo levantou.

6 - CRISTIANIZAÇÃO E CONVERSÃO

Outro desdobramento das perseguições que acarretou uma deformação da identidade original da Igreja foi a construção de um discurso intolerante em relação aos não cristãos.

Isso se deu devido ao fim das perseguições, em que o crescente poder da Igreja forneceu suporte para que ela se legitimasse como instituição e que fundamentasse sua existência por meio da supressão das outras práticas religiosas

Com o fim das perseguições no advento da promulgação imperial de Constantino e Licínio no chamado Édito de Milão (313 d. C), o cristianismo passou a desfrutar de liberdade de culto em todo o Império.

Além dessa liberdade o Imperador Constantino:

  • Devolveu os templos que haviam sido confiscados;

  • Passou a não só ressarcir as Igrejas, mas também a beneficiá-la com doações.

O maior representante do Império buscou apoio dessas comunidades cristãs, numa clara política de conciliação entre o poder estatal e essa nova religião.

Logo, Constantino, numa atitude evidentemente diplomática, continuou a prestar culto aos deuses romanos e a receber veneração a sua pessoa.

Somente na última década de seu reinado:

  • Constantino confiscou os tesouros e doações dos templos pagãos;

  • Provavelmente baniu os sacrifícios.

  • Sob seus filhos, os sacrifícios eram certamente proibidos, e muitos templos foram demolidos.

A partir de Constantino, o cristianismo tomou proporções enormes em poderio econômico e político, pois os líderes cristãos passaram de pregadores da Palavra a administradores de enormes extensões de terras doadas pelo governo, que gradativamente se tornaram como pequenos reinos onde as determinações do Bispo possuía caráter legislativo e judiciário. A forma de administração da Igreja se inspirou no modelo imperial, copiando sua hierarquia no corpo eclesiástico. Assim, a Igreja distanciou-se da instrução deixada por Jesus:

"Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos".
Mateus 20.25-28


Desse modo, a fundamentação da forma administrativa da Igreja foi inspirada não nessa direção, mas nos modelos dos homens e buscou equiparar o seu poder ao poder político humano.

7 - VOCÊ PRECISA SABER QUE:

  • A partir do século IV d. C. a Igreja que se pretendia universal (católica) tentou afirmar-se como instituição não pelas vias espirituais, mas pelas políticas e religiosas.

  • A afirmação do poder da Igreja foi muito bem-sucedida, pois, em todo o período Medieval ela deterá poderes não só espirituais, mas também temporais.

  • A Igreja Católica copiou o padrão intolerante e perseguidor daqueles que outrora a martirizou. Como, por exemplo, em 591 d. C., quando o Imperador cristão Teodósio I emitiu a primeira de uma série de leis que proibiam progressivamente não apenas o sacrifício, mas todas as cerimônias pagãs.

  • Os templos antigos da religião tradicional romana foram fechados e muitos deles demolidos pelo poder do exército romano (JONES, 1984).

  • O culto pagão nunca mais foi legal depois disso, mas as leis foram aplicadas de forma negligente e, de tempos em tempos, precisavam ser reiteradas.

  • Em 407 d. C, em resposta às representações do bispo católico Honório, na África, emitiu-se uma constituição que determinou o confisco das doações de templos e ordenou que imagens de culto fossem removidas e altares demolidos.

  • Durante o século IV d. C., os pagãos não sofreram perseguições, desde que se abstivessem de exercer seu culto. Honório os excluiu de qualquer milícia ou dignita, isto é, restringiu o direito de fazer parte do exército e de receber honras romanas.

  • Sete anos depois, Teodósio II impôs a mesma proibição ao Oriente. Em 468 d. C. Leo, por uma lei que admitia somente cristãos ortodoxos, excluiu todos os pagãos da profissão jurídica.

  • O Imperador Justiniano proibiu os pagãos de ocupar cadeiras como professores e submeteu-os às mesmas deficiências legais que se impunha aos judeus e hereges - incapacidade de fazer testamentos, de receber heranças ou legados, ou de testemunhar em tribunal.


Em 529 d. C., Justiniano até ordenou que todos os pagãos aceitassem o batismo sob pena de confisco e exílio. João, bispo de Éfeso, foi designado, em 542 d. C., obreiro oficial para conversão dos pagãos nas províncias da Ásia, Caria, Lydia e Phrygia. Ele deixou uma documentação escrita em que declara que com uma equipe de padres e diáconos, trabalhou por vários anos, a demolir templos, destruir altares e derrubar árvores sagradas. E que batizou 80 mil pessoas e construiu para elas 98 igrejas e 12 mosteiros.

Contudo, esses dados provenientes das legislações e dos relatos eclesiásticos nos remetem a questionamentos:

  • Quantos desses batismos foram confissões públicas voluntárias?

  • Diante das leis persecutórias, os seguidores da religião tradicional romana anterior ao cristianismo resolveram se converter ou somente se adequaram às novas formas de poder?

  • O que houve foi conversão ou cristianização do Império?


De fato, o contexto histórico da Igreja cristã dos primeiros séculos nos leva a refletir sobre os erros da Igreja que gradativamente rompeu com os ensinos de Jesus e se tornou uma instituição universalmente poderosa, segundo os moldes do poder político onde se desenvolveu.

Então, o que ocorreu foi uma gradativa legitimação daquilo que entendemos como a cristianização do Império, isto é, inúmeras conversões forçadas dos habitantes das regiões onde o cristianismo se desenvolveu. Desviando-se do caráter voluntário dos ensinos de Jesus em que declara: "Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mateus 16.24, grifo nosso). Assim, essas falsas conversões geraram um sincretismo religioso muito acentuado, de forma que a Igreja passou a admitir costumes pagãos entre suas comunidades. Legitimando práticas enraizadas desde a Antiguidade como a adoração a homens considerados santos.

CONCLUSÃO - RECAPITULANDO


  1. Porque em nome de Cristo a Igreja fundamentou seu poder, destruiu e edificou templos, matou filósofos, queimou escritos antigos, confiscou propriedades, privou órfãos de heranças, enriqueceu e sucumbiu na corrupção legislando injustamente.

  2. Chegou tão longe porque o governo temporal e espiritual estava em suas mãos, era soberana. O poder político beijava a mão dos padres, não se opunha, pelo contrário investia e apoiava suas ações conferindo amplos poderes aos seus líderes.

  3. A Igreja fundamentou-se filosófica e institucionalmente sob as bases do mundo em que cresceu.

  4. Sua filosofia baseou-se nos escritos dos filósofos pagão, porém a apropriação desses modelos filosóficos foram ressignificados pelos teólogos do início do cristianismo.

  5. O modelo hierárquico do corpo eclesiástico da Igreja foi influenciado pela forma organizacional do Império romano.

  6. A Igreja passou a ser governada por um que seria o primeiro entre iguais, assim como o Imperador romano era visto, só que na Igreja seu nome não era Priceps, mas Papa.

  7. A história da formação da identidade da Igreja foi rompida do seu projeto inicial porque não mais lançava mão às armas espirituais na luta contra as fortalezas das trevas e os sofismas que se levantavam contra o conhecimento de Cristo.

  8. Seus líderes agregaram muito poder, pois, eram administradores de grandes extensões de terras e deveriam até mesmo formar exércitos de homens e pegar em espadas para lutar com seus iguais e resguardar a hegemonia de seus territórios.

  9. O crescimento do poder da Igreja rompeu com sua essência, criando uma aparência suntuosa. A luxuosidade dos cultos, a administração autocrática dos bispos, a adoração aos homens tornaram-se a imagem da Igreja que pretendia ser universal, mas foi conquistada pelos ideais culturais e políticos romanos e se tornou a Igreja Católica Romana, uma sombra distante da Eclésia de Cristo.


Espero que as informações contidas neste artigo tenham ajudado você a conhecer um pouco mais da história da igreja, em todos os seus âmbitos.

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Bibliografia

ALVAREZ, Manolo García. La persecución a los paganos. Createspace: Soliman El-Azir, 2013.

BROWN, Peter. El culto a los santos. Madrid: Ediciones Segueme, 2018.

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Objetiva, 2005.

DRAKE, Harold A. Violence in the Late Antiquity. New York: Routledge, 2016.

GADDIS, Michael. There is no crime for those Who have Christ. Los Angeles: University of California Press, 2005.

JONES, A. H. M. The later Roman Empire 284-602. A social, economic, and administrative survey, 3 vols. Oxford: Basil Blackwell, 1964.

MOMIGLIANO, A. (org.). El conflicto entre el paganismo y el cristianismo en el siglo IV. Madri: Alianza Editorial, 1989.

SALINERO, Raúl González. Las persecuciones contra los cristianos en el Império Romano. Madrid: Signifer, 2005.